“ Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência significa respeito. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade”
(Nilton Bonder “A Alma Imoral”)
Muitas são as maneiras de definir uma Empresa Familiar. Uma delas seria afirmar que o Controle da Companhia está concentrado nas mãos de uma família. Outra, de que organizações desse tipo são caracterizadas por três dimensões que se articulam e sobrepõem: a família, a propriedade e a gestão (modelo clássico dos 3 Círculos preconizado pelo Prof. John Davis). Outros grifam que uma Empresa Familiar cabe ser denominada enquanto tal quando perdura no decorrer do tempo, isso é, não finda na geração que a fundou. Todas são definições válidas. Teremos de fazer recortes. A última definição é a que nos faz pensar no tempo que passa (ou que não passa) na Organização Familiar. E isso tem tudo a ver com o tema em questão: a Traição Virtuosa na Empresa Familiar – conceito cunhado e inspirado no artigo de James Krantz – ” Leadership; betrayal and adaptation”
Pode soar um paradoxo. Afinal a noção de traição não estaria relacionada a violações morais, corrupção, atos sinistros dirigidos a vantagens pessoais que lesariam a empresa e demais grupos nela envolvidos? Não necessariamente. Evidentemente que tais traições destrutivas existem. Mas falaremos de outra natureza de traição: aquela dirigida a uma finalidade construtiva aliada ao propósito de fortalecer a empresa. Zelar pela sua visão de futuro. Essa seria a traição virtuosa. Essa é especialmente relevante no contexto dos distintos personagens e gerações de uma organização familiar. Essa é parte inerente dos fenômenos de sucessão.
Ora, então uma sucessão envolve necessariamente a traição virtuosa? Cremos que sim. Goethe postulava: “aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”. Trata-se de uma conquista ser a geração sucessória. Escolher qual o caminho a ser traçado dentro da companhia familiar (ou não). Imprimir um estilo autoral naquilo que se escolhe. Que é singular. E difere do que estava dado, estabelecido, do status quo até então vigente. É nesse sentido que a traição se dá. Convém associar a traição virtuosa com uma postura de maturidade. E isso é decisivo. Porque é nefasto o cenário no qual falta maturidade, no qual a experiência, conhecimentos e boas práticas existentes na organização são negligenciados e/ou negados. Não é disso que se trata a Traição Virtuosa como a descrevemos.
Falemos um pouco da figura a ser sucedida. No Brasil ainda são raras as organizações familiares cujo comando se encontra nas mãos da 3ª geração. A taxa de mortalidade das empresas familiares ainda é bastante expressiva (segundo dados do Sebrae, 67% das empresas familiares no país não chegam à segunda geração e apenas 5% sobrevivem após a 3ª). Isso quer dizer que pensar na geração a ser sucedida em uma Empresa Familiar no Brasil significa pensar em seu(s) fundador (es) na maior parte das vezes. E o fundador de uma empresa tem uma conotação mítica. A figura da empresa e a figura do fundador não raramente passam a ser assimilados como a mesma coisa. Uma entidade única.
A ambivalência também está em jogo. O fundador (ou a geração a ser sucedida) anseia muito para que a “passagem de bastão” possa acontecer, ao mesmo tempo em que sofre e resiste com esse processo. É comum que a “ passagem de bastão” desejada seja uma ficção ilusória: a ideia de que outros estarão no comando pensando, agindo e reproduzindo fielmente o que os fundadores pensam, agem e são. E isso é impossível. E mesmo que não o fosse, seria conveniente? A reprodução fiel e irrestrita de um modelo não poderia resultar em incapacidade de inovar, descompasso com um ambiente de novas exigências, modelos mentais e oportunidades? A beleza da sucessão e da Continuidade da Empresa Familiar talvez seja esse manejo de paradoxos: a traição virtuosa; a inovação acomodada com a tradição; a lógica da competitividade do mercado acompanhada com a lógica afetiva da família.
Amós Oz, escritor israelense, ao ser questionado sobre a tradução de suas obras comentou que pedia aos seus tradutores que o traíssem para que pudessem ser fiéis. A traição virtuosa é de extrema fidelidade com a obra da Empresa. Acontece que criar a linguagem própria requer contestar a vigente.
São preciosos guias na reflexão sobre o tema: ” A Alma Imoral” de Nilton Bonder e a primorosa peça de teatro ( mesmo título: ” A Alma Imoral”) protagonizada por Clarice Niskier e a obra “Judas” de Amós Oz. Uma entrevista com o autor pode ser conferida através desse link
Héctor Lisondo
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