“O Clã” é um filme argentino de 2015 que narra a história da Família Puccio e de seu monstruoso empreendimento: um negócio baseado no sequestro e na morte de pessoas. A história se passa na década de 80, no sereno e nobre bairro de San Isidro (próximo à Buenos Aires) . O slogan do filme enunciava: “quando a realidade supera a ficção”. Sugiro assistir ao trailer antes de prosseguir com a leitura.
Como o tema dos empreendimentos familiares tem sido objeto de minha dedicação e estudo há anos, o filme me tocou profundamente. São muitos os aspectos trazidos à tona na Obra (as reminiscências de uma ditadura em extinção; as “lealdades invisíveis” que perpassam o grupo familiar; etc.). No entanto, o que mais me intriga e convoca no filme é a luta visceral entre o pai- Arquimedes e seu filho- Alejandro. O filho trabalha com o pai. O filho trabalha para o pai. O propósito da Organização é criminoso e perverso. O filho sabe disso. O filho tem crítica e busca contestar o Modelo. O filho ao mesmo tempo não pode se opor: topa receber fração da “distribuição dos lucros dos resgates pagos” cedida pelo pai. Alejandro luta em se desvencilhar do trágico destino anunciado. E não consegue.
Pablo Trapero, o diretor da obra cedeu uma entrevista à Revista Época em 2015 na qual afirmou:
Antes de ser um thriller, esse filme é o retrato de uma família e, principalmente, da relação entre um pai e um filho, o que faz dela uma história universal. Relações entre pais e filhos são parecidas em todos os lugares. Não importa o idioma. O clã é sobre isso.
“Relações entre pais e filhos são parecidas em todos os lugares”. Raízes…. o que se mantém e o que se transforma ? E quando tais relações são mediadas também pela pertença comum em dado negócio da família. Empresa Familiar: território de identidade, sustento, sacrifícios…. O que se pode escolher? O que se pode ser? Que destino se dá e faz com esse particular tipo de legado: Uma empresa.
Pensei em algumas das Empresas Familiares com as quais trabalhamos. Em uma delas, especialmente. Uma empresa muito bem-sucedida capaz de produzir produtos e serviços altamente sofisticados. Pai e Mãe haviam fundado a organização na qual os 3 filhos trabalhavam no momento de nossa intervenção. O começo havia sido árduo: parcos recursos com a operação no fundo da garagem. O relato da família era o relato de heróicas conquistas (patentes de produtos; a construção de novo parque industrial e tecnológico com recursos próprios; nenhuma reclamação de clientes em 24 anos de funcionamento). Voltemos ao filme: se é difícil / impossível Alejandro sustentar um caminho de liberação e saída de uma instituição entendida por ele como perversa; “má” e que não representa motivo de orgulho algum; qual não será o trabalho dos “filhos” / herdeiros de Organizações Familiares admiradas e admiráveis para trilharem seus caminhos, questionarem seus cânones e protagonizarem suas transformações?
A Psicanálise e a abordagem vincular lançam luz na Odisseia da construção de uma Identidade autoral e própria. Defendo que tal construção é nevrálgica para o êxito das Empresas Familiares (O recorte diz especificamente de organizações Familiares nas quais a família detém o controle da Propriedade – é dona – ao mesmo tempo em que seus membros trabalham na organização). Um dos alicerces de sustentação das Organizações Familiares, creio eu, está relacionado no fenômeno denominado por Krantz de “TRAIÇÃO VIRTUOSA” ( já abordado em outro artigo) : Trata-se justamente da condição de questionar, interpelar e transformar aquilo que foi recebido; herdado. No caso específico de uma Organização, “trair virtuosamente” àquilo que inclusive representou êxitos econômicos, financeiros para fazer diferente.
Alberto Gimeno, autor que estuda as Organizações Familiares desde uma perspectiva empresarial e de gestão sustenta:
“ O Projeto de uma geração dificilmente se mantém economicamente viável e vantajoso na geração seguinte. Esse é um erro que tem frequentemente atravessado às organizações familiares: a premissa de que a geração entrante pode sustentar o projeto da geração anterior exclusivamente através de incrementos na eficiência operacional da empresa. Ou em outras palavras, fazendo melhor o mesmo. Esse é o porquê o empreendedorismo deve ser um dos pilares do processo sucessório (…) a companhia familiar deve ser capaz de cultivar, fomentar e materializar esse espírito empreendedor ”.Penso no verso de Manoel de Barros: “ Tudo que não Invento é falso”.
O esforço que me parece interessante é o de favorecer diálogos e pontes entre aquilo que a literatura da gestão enuncia e aquilo que a Psicanálise nos diz. Acrescentar ao enunciado de Gimeno que tal logro (não reproduzir “ mais do mesmo”; empreender criativamente contestando paradigmas e fazendo emergir algo inédito e distinto do recebido) está longe de ser trivial nem é isento de muito trabalho psíquico. Bion e seu aporte no que se refere à Capacidade Negativa e a alta voltagem emocional envolvida no processo de enfrentar o desconhecido também nos ensina muito nesse sentido.
Enriquez desde o seu campo de estudos, também colabora ao grifar:
…“ As organizações `negam a realidade do tempo e da morte`. Elas se querem imortais, mesmo sabendo que podem desaparecer. Funcionam sob a égide da denegação (eu sei, mas apesar disso…), que as protege de tomar consciência de suas dificuldades, da finitude necessariamente ligada às suas ações e de seu enfrentamento ao real”.
Vale lembrar que no Brasil, segundo dados do SEBRAE de 2011, apenas 5% das organizações familiares perduram até a 3ª geração e 65% das empresas desaparecem devido a conflitos familiares. Outro estímulo que nos faz pensar…
A Organização Familiar é território complexo por excelência – dimensões jurídicas; societárias; empresariais; afetivas; existenciais convivem e se sobrepõem. A literatura sobre o tema muitas vezes negligencia as ambivalências, tensões e forças emocionais em jogo porque parte de um vértice outro. “Cartilhas” e “ Boas práticas de governança” são propostas como se a sua implantação fosse óbvia e razoável. Acredito que a leitura da psicanálise possa dar elementos para elucidar o campo nos seus mistérios e desafios. E favorecer uma trilha de desenvolvimento outro no qual os membros familiares possam aproximar-se, talvez, de um arranjo mais amadurecido. (Novamente os aportes de Bion sobre Grupos também iluminam o tema). O que possibilita a criação de um futuro e destino diferentes.
Para concluir, não encontro imagem mais justa e bonita do que um trecho de Eduardo Galeano (Ventana sobre la memória):
Então ocorre a cerimonia da iniciação:
O oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua melhor peça.
Assim manda a tradição entre os índios do noroeste da América.
O artista que se vai entrega sua obra mestra ao artista que se inicia.
E o oleiro jovem não guarda essa vasilha perfeita para contemplar-la nem admira-la,
Se não a joga com força contra o chão, a rompe em mil pedacinhos ,
Recolhe os pedaços e os incorpora ao seu argila.
BION, W.R. Atenção e interpretação: uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos. Rio de Janeiro, Imago, 1973.
ENRIQUEZ, E. Jogos de Poder na Empresa: sobre os processos de poder e estrutura organizacional. São Paulo, Zagadoni, 2014.
GIMENO, A; BAULENAS, G; COMA-CROS J: Family business Models: practical solutions for the business family. London: Palmgrave MacMillan, 2010.
KRANTZ, J. Leadership, betrayal and adaptation. Human Relations Journal, 2006, 59 (2), 221-240.
Héctor Lisondo
O Instituto Lisondo é uma Consultoria Boutique fundada em 1998 com o propósito de promover o desenvolvimento de pessoas e empresas através de propostas customizadas e bifocais (aspectos técnicos e humanos simultaneamente abordados).
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