A decisão do casal Meghan e Harry de distanciar-se da família real britânica foi amplamente noticiada no começo desse ano. O caso é revelador de questões instigantes.
A Família é tema fundamental para a psicanálise. Trata-se de uma instituição, e, portanto, segundo Enriquez (1989) de um suporte existencial no qual se faz possível manter ou renovar as forças vivas de uma comunidade, permitindo aos seres humanos serem capazes de viver, amar, trabalhar, mudar e, talvez, criar o mundo à sua imagem (p. 73). Em outras palavras, é a partir desse “microcosmo” [1] que o infans tem chances de constituir-se como sujeito.
Portanto, a família é o contexto para o “devir-vir-a-ser”. A tônica de alguns autores privilegiou especialmente esse recorte: aquilo que nos constitui seria profundamente marcado pelas forças dessa história de transmissões no decorrer das gerações. Segundo essa perspectiva, seria ponderado afirmar que somos sujeitos de heranças ( muito mais do que sujeitos de pulsões). Kaes ( 1989) foi um desses autores. Segundo ele:
“ Aqui somos confrontados não apenas com a dificuldade de pensar aquilo que por um lado, nos pensa e nos fala: a instituição nos precede, nos determina e nos inscreve nas suas malhas e nos seus discursos (…)Descobrimos também que a instituição nos estrutura e que contraímos com ela relações que sustentam a nossa identidade” (p.20).
Faço esse preâmbulo porque me parece fundamental oferecer o contorno visceral que circunda todo e qualquer grupo familiar. E, evidentemente a alta voltagem emocional envolvida na escolha de manter-se ou distanciar-se desse circuito. Retomando o acontecimento anunciado pelo casal real Meghan e Harry, vale notar como a chegada do filho Archie parece ser determinante para a explicitação dessa fratura. E tal fissura pode ser pensada como algo que se dá com uma família no decorrer do tempo. Com uma filha que passa a ser mãe. Um filho que passa a ser pai. Com alguém que se casa para formar uma nova família. Vale captar e nomear as tensões próprias dessas novas configurações nas Famílias Empresárias. Isso porque o negócio da Família pode servir de pretexto para inibir esse necessário movimento. Uma Família Empresária tende a ser “endogâmica” no seu modus operandi. Por isso, a tarefa e coragem do Príncipe Harry, metaforicamente, é a tarefa de todo membro de uma Família Empresária. Mesmo que permaneça no contexto profissional e/ou societário do negócio da sua família: é importante que possa criar o seu espaço para construir a sua obra.
É interessante pensar que o caso da família real britânica é, ao mesmo tempo que não é, um caso cuja lógica se assemelha ao de uma família empresária.
É uma família empresária na medida em que a sua existência está articulada com um negócio.
Por outro lado, não o é pois o príncipe Harry não tem uma história de um patrimônio construído a partir de um risco empreendido por alguém de sua família. A sua história é a de pertencer a uma família real – cujo sobrenome garante títulos, riquezas, a ” marca” da família real. Inclusive faz parte dos requisitos dos membros da família real não trabalharem nem possuírem negócios: devem dedicação exclusiva às relações públicas para o Estado ( além da dedicação à administração do seu patrimônio).
Nesse sentido, a ruptura anunciada pelo casal inaugura novas possibilidades. Há especulações sobre o retorno de Meghan à sua carreira como atriz, por exemplo. Também é útil observar as consequências desse movimento. Meghan e Harry terão de arcar com os 2,4 milhões de libras oriundos dos cofres públicos usados para a reforma da residência de Windsor. Também estão cientes que não receberão mais recursos públicos.
É claro que pensar no caso da família real é pensar em um caso sui generis. De todas formas, a riqueza desse exercício é o que se escancara de forma aguda. É muito comum que observe a nossa intervenção em Empresas Familiares como a oferta de um espaço para que certas escolhas sejam notadas, abandonadas, cogitadas, sustentadas. E fazer uma escolha envolve necessariamente arcar com as suas consequências. A decisão do Harry e Meghan ilustra isso muito bem: distanciar-se da família e das suas obrigações como membros da realeza é abdicar da residência reformada. É contrair uma dívida. É a responsabilidade por encontrar outras formas de viver.
A tarefa de uma vida de verdade tem a ver com as consequências enfrentadas a partir das escolhas realizadas. E muitas vezes, o que se nota em Famílias Empresárias é uma “vida de ilusões”. Por exemplo: ” Filho, não se preocupe se não puder trabalhar. Prometo que o seu salário vai cair no final do mês“. Um triste destino porque não se pode sustentar aquilo que garantido está.
[1] – O bebê pode vir a se constituir como sujeito graças a um ambiente que pode assumir a responsabilidade de ser o seu anfitrião. Nesse sentido atores que não correspondem à família biológica da criança podem operar como família: exercer a função dessa instituição.
Referências Bibliográficas:
ENRIQUEZ, E.; FORNARI, F.; FUSTIER, P.; ROUSSILLON, R.; VIDAL, J. P. (Orgs.). A instituição e as instituições. Trad. J. P. Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989, p. 1-39.
KAËS, R. Realidade psíquica e sofrimento nas instituições. In: KAËS, R.; BLEGER, J.; ENRIQUEZ, E.; FORNARI, F.; FUSTIER, P.; ROUSSILLON, R.; VIDAL, J. P. (Orgs.). A instituição e as instituições. Trad. J. P. Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989, p. 1-39.
Héctor Lisondo
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