” Succession” ( série criada por Jesse Armstrong e estreada em 2018) é uma oferta brilhante para os personagens, estudiosos e interessados no tema das Empresas Familiares. Claro, o sucesso estrondoso da série mostra que o seu magnetismo cativa não apenas esses, mas um público diverso e abrangente. É que a realidade de uma empresa familiar, das suas disputas, poderes e segredos reúne ingredientes dos mais instigantes para compor um enredo dramático de fôlego. No caso da série, temos a história de um império ( um grande conglomerado do setor da mídia) fundado por Logan Roy, pai de 4 filhos: Roman; Siobhan; Kendall e Connor.
A premiação recente do Emmy atesta o reconhecimento da produção: foram 4 troféus ( melhor série dramática; melhor ator para Jeremy Strong; melhor direção e melhor roteiro). No início do ano, a série levou um Globo de Ouro como melhor série dramática e outro de melhor ator para Brian Cox.
Caso deseje assistir à série sem spoilers desse texto, sugerimos parar a leitura aqui.
Os atores premiados correspondem às figuras do filho e do pai ( Jeremy Strong interpreta Kendall Roy e Brian Cox interpreta o papel do pai, Logan Roy) – eixo nevrálgico de movimentos que flutuam entre hostilidade e adoração. Um dos méritos da série é a capacidade de urdir elementos que se sobrepõem. Os momentos de aliança e harmonia entre Kendall e Logan são envoltos em tensa atmosfera. Assim como os momentos de explícito desencontro são marcados pelos seus vestígios de ternura e afeto. Se é senso comum falar da ambivalência e ambiguidade em uma família empresária, não é fácil dar corpo à natureza visceral dessas dinâmicas. A série alcança esse logro.
Em determinado momento da série Shiv (apelido de Siobhan) conversa com o irmão Kendall. A sua fala sumariza: ” Você tem uma dificuldade em achar um equilíbrio entre querer destruir o papai e idolatra-lo, não?”. Diríamos que essa é uma dificuldade que atravessa, em alguma medida, todos os membros sucessores de uma cadeia familiar.
O caso da família empresária Roy encarna disfunções naquilo que seria a adoção de boas práticas de governança corporativa na sua máxima expressão. Ora: não seria uma escolha inverossímil fazê-lo ? Talvez a verossimilhança da obra esteja justamente em apresentar esse paradoxo. A empresa corresponde a um grupo de capital aberto ( configuração que será objeto de questionamentos no decorrer da trama). Há acionistas externos, há conselheiros, há fóruns de prestação de contas. No entanto… todo esse cabedal estruturado de gestão convive em paralelo com os ardilosos Roys.
Já no início da série, o pai aparece na empresa e pede ao filho Kendall que assine alguns documentos ( ” meras formalidades e protocolos“). O filho obedece, e nas próximas cenas conhecemos o teor dos papéis e a manobra do pai. Os demais filhos são interpelados: “vão assinar ou não ? O Kendall já assinou“. É sabido que a transparência é pilar inegociável numa saudável cultura de Governança Corporativa. Ora: conhecer os conceitos e a lógica que os sustentam não parece ser difícil. O estado da arte na consultoria consiste em oferecer uma experiência transformadora em uma família empresária cujas práticas refutam seus princípios. E muitas vezes a forma mais eficaz dessa recusa consiste na aparente adesão aos mesmos.
O exercício de boas práticas de Governança Corporativa vai muito além de princípios a serem conhecidos e praticados ( Prestação de Contas, Transparência, Equidade, Responsabilidade Corporativa; etc.). Requer uma disposição primeira segundo a qual os atores da Organização Familiar se situem no contexto de um sistema. Servidores de um propósito que os transcende.
Nesse sentido, a série também aponta para os desafios incontornáveis de transformação na cultura de uma família empresária. E deixa espaço para questões acerca dos limites desses esforços em casos extremos. É o caso do Clã Roy. Logan Roy definitivamente não se vê como parte de um sistema. Ele é o seu negócio. O seu negócio é ele. Em determinado momento da série, em episódio no qual convida membros da sua família e executivos para um jogo ( aliás, é frequente esse expediente: vestir de caráter lúdico uma dinâmica perversa) o seu sobrinho busca decifrar as ” regras” para não ser punido. Logan Roy é categórico: “não há regra aqui“. O código é o do seu puro arbítrio pessoal.
Poderia uma consultoria / assessoria ter algum êxito em alguma intervenção nesse caso? Como dissemos, há casos nos quais as forças de desagregação e desorganização são tão intensas que a própria noção de sucesso deveria ser posta em questão. O fracasso de uma dada experiência de ajuda pode ser um elemento promissor caso possa ser integrado e processado pelo cliente. Caso possa reverberar em questão: quais os motivos pelos quais essa experiência de ajuda não vingou? Frisamos que em muitos casos uma variável decisiva corresponde à falta de habilidade das consultorias para lançar-se nesse terreno movediço e angustiante. É comum que intervenções nesse campo sejam essencialmente ” técnicas”, supostamente ” neutras” , desprovidas de um corpo sensível que capte e promova o ” dar-se conta” desse turbilhão de caos, medo, poder , conflito. Nesse sentido, qualquer intervenção disposta a ” provar a conveniência da adoção de boas práticas de Governança Corporativa” seria um projeto natimorto. Daí o valor de uma abordagem que dá estatuto de significativa importância às dinâmicas inconscientes e emocionais que operam nesse campo. E que pode ler que há um momento e um processo até que a lógica da razão possa se fazer ver em muitos casos.
A digressão acima sinalizada é também dramatizada na série. Em determinado momento, um psicólogo famoso é chamado para uma conversa com o grupo familiar. A ideia parte da executiva responsável pela assessoria de imprensa do grupo, o que é emblemático de um investimento motivado por questões de imagem mais do que de verdade. Não que não houvesse um sofrimento atroz nessa família. Mas dele não se falaria na encenação proposta. A série expõe a desastrosa e atrapalhada intervenção do célebre psicólogo. ( Vale lembrar : é importantíssimo discriminar o que configura uma terapia familiar de uma consultoria em uma empresa familiar).
O tema de artifícios que recobrem a verdade do que se passa permeia toda a trama. O que não encontra meio de ser acessado é atuado com virulência. A violência chega a ser ato: murro; soco. O retrato da impossibilidade da comunicação é outro dos méritos da série. São raras as cenas em que os irmãos podem se apresentar desarmados, espontâneos. Na maior parte das vezes as falas transmitem provocações sarcásticas, sondagens espúrias, reativos comentários. O ambiente é propício para que personagens externos à família participem da ciranda de manipulações e manobras convenientes aos seus interesses. É como se cada um dos executivos, investidores e demais personagens- chave buscasse aliciar um novo Clã para chamar de seu.
Muitos outros elementos poderiam ser destacados na série composta de 02 temporadas. Talvez dramas como esses sejam das fontes mais preciosas para aqueles dispostos a pensar e aprender sobre o que se passa no devir de uma família empresária.
Héctor Lisondo
O Instituto Lisondo é uma Consultoria Boutique fundada em 1998 com o propósito de promover o desenvolvimento de pessoas e empresas através de propostas customizadas e bifocais (aspectos técnicos e humanos simultaneamente abordados).
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