“O Ar que me falta” de Luiz Schwarcz: o testemunho de um empresário e das marcas da sua história transgeracional
” O Ar que me Falta” de Luiz Schwarcz é um livro raro. O empresário com profunda coragem sublinha seus fracassos, suas desastrosas atuações em determinadas circunstâncias, seu sofrimento atroz. É tudo, menos um livro sobre uma empreitada de sucesso. Evidentemente, o bem-sucedido negócio da Companhia das Letras – empresa fundada por Luiz Schwarcz compõe a trama. Mas o faz como parte indissociável de uma história habitada por silêncios, reparações e muita dor. É neste sentido que o êxito extraordinário do editor reconhecido é matizado com ingredientes de uma história de não-ditos, solidão e tragédia. De guerra. A capacidade de realização e de trabalho não se divorcia do imperativo de buscar respostas e do enorme fardo da responsabilidade experimentado desde sempre. ( Caso não queira spoilers do livro, interrompa a leitura aqui).
Um dos feitos do livro é o de realçar como uma história de gerações prévias é urdida e operante em um momento atual. Luiz recebe o nome do seu avô, Láios e esse fato também é profundamente significativo de uma elaboração em curso ( e talvez impossível de ser alcançada. Afinal: como atravessar o trauma do holocausto?). Nas palavras de Luiz:
” o trauma da guerra em que os judeus não tinham como, ou não souberam, reagir, ficou marcado na pele de várias gerações” p.100.
Os pais escolhem oferecer ao filho, o nome do avô, e este é um caminho que reúne ideais, expectativas, culpas e mistérios. ( Aliás, é sempre intrigante pensar nos nomes que se repetem nas famílias empresárias no decorrer de gerações… ). Ao outro filho que tiveram ( e que falece com apenas 3 dias de idade) o casal escolhe o nome “Rodolfo”. Rodolfo é uma homenagem ao médico iugoslavo que trata a debilitada saúde da mãe de Luiz, Mirta, no campo em que chegou depois de sete dias em vagões de gado. O peso de ser um filho único de vários irmãos potenciais ( são muitos os abortos e tentativas de engravidar novamente do casal) atesta uma vitória custosa: a sua vida vingou enquanto tantas outras não. É o fardo também do seu pai, André.
Luiz nunca conheceu o avô mas é profundamente tocado pelo que herda deste. E o que herda é seu talit e o testemunho da presença atormentada de seu pai. André convive com seu pai, Láios, até os seus 19 anos, quando deixa o trem que os levava para o campo de extermínio de Bergen-Belsen. Na verdade, foge, obedecendo o pedido do pai para que ao menos ele tenha chances de salvar-se:
…” Passar a vida sob o jugo de uma imagem hegemônica , a de ter sido salvo pelo empurrão do pai, custou muito a André. Na noite em que ele me contou boa parte de sua história, reproduziu, com grande emoção, a frase que ouviu de Láios. ” Foge, meu filho, foge” . Quem pode imaginar o que representa o fato de ter obedecido na hora em que devia ter sido um bom filho às avessas, aquele que desobedece à ordem paterna de escapar e salvar sua própria vida?” (p. 17)
A transmissão do mandato do filho que falha na suposta missão de salvar o pai, é também, por sua vez, a história de Luiz. E assim captamos o magnetismo destas forças inconscientes transmitidas em uma cadeia de gerações: clamam por repetir-se incessantemente.
“ Diante de expectativas exageradas, passei também a me cobrar em demasia. Se esse conjunto não me conferiu uma depressão infantil, certamente aguçou em mim o sentido de que eu era muito importante para o casamento dos meus pais e para, no futuro, evitar que André afundasse numa tristeza profunda. Nas últimas décadas da sua vida, ele colocará ainda mais em mim a responsabilidade por salvar seu casamento, que, exceto por um curto período após a reconciliação, foi sempre frágil. Desde pequeno eu era crucial para um matrimônio com variados motivos para dar errado, e nada do que pudesse fazer o tornaria feliz“. (p.34)
A própria escrita do livro parece ser uma das formas que Luiz encontra de assumir a sua história. Discriminando-se e reconhecendo-se na travessia construída. Curioso como leva tempo até que possa escolher o formato de uma obra biográfica. De um livro sobre si. Ele revela como muitas das suas tentativas de escrita anteriores seriam tentativas de romances acerca da história do pai e do avô. A expectativa de alegrar a mãe e o pai nessa entrega também se faz notar.
No livro observa-se como Luiz foi capaz de criar uma história diferente em muitos sentidos. O casamento com Lili ( Lilia Schwarcz – reconhecida professora e pesquisadora da USP) e a força de um vínculo de tanto encontro e sensibilidade emociona. Não foram poucas as turbulências nos momentos de crise profunda de Luiz.
O livro também é generoso ao grifar os apoios fundamentais com os quais Luiz contou. Os psiquiatras, as sessões de psicanálise, os editores que foram francos ao apontar as críticas aos livros escritos anteriormente, os funcionários da Cia. das Letras ( relata um episódio em que escreve uma carta desculpando-se com todos após um episódio de descontrole na empresa).
O empreendedorismo e a relação com negócios familiares também faz parte da sua paisagem infantil:
“Depois de casado, meu pai começou a trabalhar com o sogro. Foi uma ideia infeliz, desde o princípio. Na gráfica de cartões, para a qual meu futuro apontava, não havia paz. Às vezes me ocorre a fantasia de que, quando eu nasci, meus pais e avós afixaram na porta do quarto na maternidade um cartão de boas-vindas, impresso na própria Cromocart Artes Gráficas, com os dizeres: “Bem-vindo, querido herdeiro, a gráfica da avenida Rio Branco te aguarda”. (p.31).
Embora a Cia das Letras não seja a Cromocart, percebe-se como a vocação para os negócios na interface com a arte se nutre desse legado ( a leitura completa do livro fornecerá os ingredientes de outros personagens e influências neste sentido. Cito apenas que a afeição de Luiz por música financiada por uma de suas avós maternas é das partes mais ternas do livro). A tensão entre a visão de um homem de negócios mercantilista e um homem sensível das artes é trazida à tona ( inclusive o tema inspiraria um dos seus romances). É bonito pensar na teia de identificações criada e encontrada por Luiz nesse caminho. Do enfrentamento das suas limitações ao reconhecer-se como escritor medíocre em muitas das suas iniciativas. A existência de uma editora com a característica da Cia das Letras é o compromisso com a escolha criteriosa de boas histórias / livros a materializar no mundo. É criar um trem dirigido a furar fronteiras, revelar artistas e promover a vida. ” O Ar que me Falta” também é sobre isso.
Observação: Luiz compartilhou a playlist imersiva que acompanha o livro. Confira o lado A e o lado B. Neste texto do blog da Cia. das Letras a iniciativa é contextualizada e esclarecida. Vale conferir.
Referências Bibliográficas:
SCHWARCZ, L. O Ar que me falta. São Paulo. Companhia das letras. 2021.
Héctor Lisondo
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