A literatura talvez seja uma das vias mais privilegiadas para oferecer contorno àquilo que é difícil caracterizar, enunciar. O que é um Legado? O que é um Patrimônio ? O que representa um Testamento?
É sabido que muitos saberes operam nesse campo. No caso de Organizações Familiares, consultorias, assessorias jurídicas; boas práticas de governança e estratégias diversas acomodam e planejam uma certa organização patrimonial e empresarial. E tudo isso é muito bem-vindo. Ocorre que uma dada transmissão comporta àquilo do domínio técnico da razão, do previsto e do controlável ao mesmo tempo em que escapa a esse registro. Philip Roth – aclamado escritor norte-americano – talvez seja um dos responsáveis por inestimável contribuição nesse campo. Justamente por escancarar o imprevisto, o contraditório, o reticente, o arrependido, o disputado. Sua morte na semana passada me fez rememorar a leitura de uma das suas obras: ” Patrimônio- Uma história Real”. Sua dedicatória é a seguinte: ” Para a nossa família, os vivos e os mortos”. O livro faz pensar: ” Patrimônio” – quantos meandros, sentidos, rezas, objetos, não-ditos cabem nessa palavra?
No livro autobiográfico, Roth é o filho que testemunha a luta do pai de 86 anos contra o tumor cerebral que irá mata-lo. É um livro sobre a morte. É um livro sobre a vida. É um livro sobre sua família , sobre si próprio- o judaísmo , seus antepassados, Newark. A herança – o “prosaico-divino” de uma tigela de barbear. A finitude como destino de qualquer êxito . É um livro também sobre humildade – no qual o escritor reconhece quanto de si é graças aos outros. Graças ao pai – sua tenacidade, seu teimoso e firme pacto com a vida.
Tomo a liberdade de transcrever um trecho do livro. Trata-se de Philip Roth às voltas com a decisão que fez ao ceder a sua herança para seu irmão. Patrimônio – é de voltagens emocionais, ambivalências, lacunas e intensidade que se dá o devir herdeiro. Gratidão ao escritor imenso que nos legou- dentre tantas coisas- o relato honesto e corajoso da sua experiência. Se ficamos todos mais órfãos sem a sua presença viva entre nós; ficamos todos mais ricos na companhia de sua obra.
” … Quando o visitei na Flórida dois ou três anos após a morte de mamãe, a questão do testamento foi suscitada e eu lhe disse que deixasse todo o dinheiro para Sandy dividir, como quisesse, entre ele e os dois filhos. Expliquei que eu não precisava de dinheiro e que as parcelas de Seth e Jonathan poderiam ser importantes para eles caso o montante total fosse dividido em dois ou, no máximo, em três. Falei aquilo para valer, confirmei depois numa carta dirigida a ele e desde então não havia mais pensado no testamento.
Mas agora, com sua morte deixando de ser algo remoto, saber que ele fora em frente e, com base no meu pedido, praticamente me eliminara como um de seus herdeiros provocou uma reação inesperada: me senti repudiado – e o fato de que a exclusão havia sido causada por mim em nada mitigou o sentimento de ter sido rejeitado por ele. Eu tinha feito um gesto generoso que também se encaixava, assim supunha, nos discursos de igualdade e autorrealização que eu fizera a papai desde o começo da adolescência. Cumpria também admitir que se tratava de uma tentativa bastante característica de assumir uma postura de superioridade moral dentro da família, definindo-me aos cinquenta anos – da mesma forma que eu fizera na universidade e mais tarde como jovem escritor – como um filho para quem as considerações materiais eram praticamente irrelevantes. Mas me senti arrasado por ter feito aquilo: ingênuo, bobo, arrasado mesmo.
Para meu grande desgosto, ali de pé ao lado dele, vendo o testamento, descobri que queria a minha parte da sobra financeira acumulada durante uma vida inteira, contra todas as probabilidades, por aquele homem obstinado e resoluto que era meu pai. Queria porque o dinheiro lhe pertencia e eu, como seu filho, tinha direito a um quinhão. E queria também porque, embora não se tratasse de um pedaço genuíno de seu couro de trabalhador, era uma forma de corporificação de tudo que ele superara e a que sobrevivera. Era o que ele tinha para me dar, era o que havia desejado me dar, o que me era devido pelos usos e costumes e pela tradição – por que cargas-d`água eu não tinha calado a boca e permitido que as coisas seguissem seu curso natural?
Será que eu não me achava digno daquilo? Será que considerava meu irmão e seus filhos mais merecedores como herdeiros do que eu, talvez porque meu irmão, ao lhe dar netos, houvesse conquistado mais legitimidade como herdeiro de um pai do que um filho que não havia procriado? Será que eu era o irmão mais novo que de repente se tornara incapaz de fazer valer seus direitos contra a antiguidade de alguém que tinha chegado antes? Ou, pelo contrário, será que eu era o irmão mais novo que acreditava já haver usurpado demais as prerrogativas de um irmão mais velho? De onde viera exatamente esse impulso de abandonar meu direito sobre a herança? Como teria tal impulso vencido com tamanha facilidade as expectativas que eu agora, tardiamente, descobria que um filho tem o direito de acalentar? ( Págs. 81; 82 e 83).
Referências Bibliográficas:
ROTH, P. Patrimônio: uma história real. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Héctor Lisondo
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